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CAPITULO VI.

DOS GALLICISMOS.

Abra-se a antiga veneranda fonte
Dos genuinos classicos, e soltem-se
As correntes da antiga linguagem.
FILINTO ELYSIO.

FALLAREI neste Capitulo da influencia que a lingua portugueza tem recebido das linguas modernas, ou mais exactamente, da franceza.

L

De todas as linguas modernas he a franceza aquella de que a portugueza tem recebido maior e mais profunda influencia. ¿Qual he a rasão disto?

M. De Lamartine diz algures, na sua interessante «<Histoire des Girondins»>«Il y avait de plus, et il y aura toujours dans «<le génie français quelque chose de plus puissante que sa puis«sance, de plus lumineux que son éclat, c'est sa chaleur, c'est <«<sa communicabilité pénétrante, c'est l'attrait qu'il ressent et <«qu'il inspire en Europe. Le génie de l'Espagne de Charles<«<Quint est fier et aventureux; le génie de l'Allemagne est pro<«<fond et austère; le génie de l'Angleterre est habile et surper<«<be; celui de la France est aimant, et c'est là sa force. Séduc«<tible lui-même, il séduit facilement les peuples. Les autres «<grandes individualités du monde des nations n'ont que leur gé«nie. La France, pour second génie, a son cœur; elle le prodi«gue dans ses pensées, dans ses écrits comme dans ses actes na«tionaux. Quand la Providence veut qu'une idée embrase le «monde, elle l'allume dans l'âme d'un Français.>>

Pondo, porém, de parte esta communicabilidade do genio da França, outras rasões podem apresentar-se da influencia que a lingua portugueza tem recebido da franceza.

A lingua franceza he, desde longo tempo, uma lingua universal; por meio della se intendem individuos de differentes nações, como se entre estrangeiros servisse de interprete; desde a paz de Riswich e Nimegue está em uso entre os embaixadores, e he empregada em todas as negociações diplomaticas, como sendo muito clara, precisa, e regular; na lingua franceza está escripto quanto ha de mais interessante nos differentes ramos dos

conhecimentos humanos, quanto póde ser util ou agradavel á humanidade, como elegantemente o disse o nosso Francisco Manuel:

«Não que á lingua franceza eu odio tenha,
«Que fora absurdo em mim. Ninguem confessa
«Mais sincero o valor de seus bons livros
«De todo o bom saber patentes cofres
«De polidez e de eloquencia ornados.
«Bastara em seu louvor, se o carecera,
«Ser bem vista e prezada em toda a Europa,
«Das côrtes e dos sabios no universo.
<«<Conter em si ou proprio ou traduzido,
«Quanto Minerva poz no peito humano,
«As fadigas das artes, das sciencias,
«E os enfeites do flórido discurso.>>

O uso da lingua franceza, tão frequente, tão seguido, e sobre tudo a lição dos livros francezes, desde longo tempo muito generalisada, necessariamente havião de deixar fortissima impressão na nossa lingua.

¿Até onde se estendeu essa influencia?-Não só até ao ponto de introduzirmos na nossa lingua um grande numero de voca→ bulos francezes, mas tambem de tomarmos do francez um modo particular de tecer o di curso, e um certo ar, geito, ou estylo de fallar e escrever, que é proprio daquella lingua, e que não conforma com a indole, genio e caracter da lingua portugueza.

A nossa Academia Real das Sciencias não podia ficar impassivel ao ver o perigo que hia correndo a formosa lingua portugueza, e por isso o primeiro assumpto por ella proposto no programma de 1810, na classe de Litteratura Portugueza, foi o Glossario ou Catalogo de palavras e phrases, em que se mostrasse com toda a individuação as que são proprias da lingua franceza, e que por descuido ou ignorancia se tem introduzido na locução portugueza moderna, contra o antigo e bom uso, e principalmente as que forem contra o genio da nossa lingua, e como taes inadoptaveis nella.

Desempenhou este assumpto um litterato insigne, o Sr. D. Francisco de S. Luiz, compondo o bem conhecido Glossario das palavras e phrases da lingua franceza, que por descuido, ignorancia ou necessidade se tem introduzido na locução portugueza moderna, com o juizo critico das que são adoptaveis nella.

¿Qual plano de trabalho traçou o distincto author do Glossario? Qual principio regulador seguío nos seus juizos criticos? <«Para executarmos este proposito, diz elle, lemos muitas obras «dos nossos modernos escriptores, assim traduzidas do francez, «como originaes, que correm impressas; e nos servimos das ob«servações, que já tinhamos feito, ou de novo fizemos sobre a sua «linguagem, bem como sobre os vocabulos ou phrases mais usa«das na conversação familiar, nos escriptos não impressos, e nos «sermões, e outros discursos das pessoas litteratas, e dadas á «lição dos livros francezes, comparando-as com a locução dos «nossos classicos, e examinando-as á vista dos diccionarios da «nossa lingua..... Em geral tivemos sempre diante dos olhos <«esta regra:-que sendo o vocabulo de boa origem, derivado <<conforme a analogia, e ao mesmo tempo expressivo, e harmo«nico, se podia adoptar e trazer á nossa lingua, ainda quando «nesta houvesse algum synonimo, que exprimisse o mesmo con«<ceito. >>

A uma ponderosa duvida dava logar o assumpto proposto pela Academia, não determinando a epocha desde a qual a nossa linguagem devia dizer-se moderna. O illustre author do «Glossario,» attendendo a que nos principios do seculo XVIII, e com o reinado do Sr. rei D. João v começou a restauração da nossa litteratura, e consequentemente o estudo e frequente lição dos livros francezes—resolveu contar desde esse ponto a idade moderna da nossa lingua.

Não consistem os gallicismos sómente nos vocabulos fraucezes introduzidos na lingua portugueza contra o antigo e`bom uso, e principalmente contra o genio della; mas tambem em certos modos de fallar, que embora conservem as palavras portuguezas, alterão todavia a fórma original do idioma, e lhe dão um colorido estrangeiro, e alheio da sua natureza Conseguintemente, o «Glossario » seria muito imperfeito, se não indicasse tambem, como effectivamente indica, esses modos de fallar, viciosos em quanto á syntaxe, e mal soantes na nossa lingua.

Não teria a lição dos livros francezes sido prejudicial, debaixo do ponto de vista linguistico, se com ella não concorressem o fatal esquecimento em que deixamos os nossos classicos, e a falta de um bom Diccionario de ambas as linguas. Concorrendo, porém, simultaneamente estas causas, foi consequencia necessaria, que não estando os leitores sufficientemente premunidos com o estudo e conhecimento da sua propria lingua, e

não podendo perceber com clareza e precisão a mutua correspondencia de vocabulos e phrases, e o differente caminho que cada uma das duas linguas requer para explicar os seus conceitos, se introduzirão os gallicismos,-terrivel cancro que hia devorando a nossa boa linguagem, e tornando-a desengraçada, barbara e mal soante.

--Quero dar que em francez hajão formosas.
Expressões curtas, phrases elegantes;
Mas indoles diff'rentes teem as linguas;
Nem toda a phrase a toda a lingua ajusta.

Assim se exprimio o illustre poeta portuguez, que no proprio seio da França pugnou valente em defeza da nossa lingua, e fez cruenta e desabrida guerra aos que, sem tino, afeiárão

O gesto airoso do idioma luso.

E com effeito, cada uma das linguas tem um genio particular, um modo especial de exprimir os conceitos, uma elegancia propria, diverso systema de tecer o discurso, distincta eufonia; donde vem que será absurdo introduzir em uma lingua, sem pausado exame e séria reflexão, os vocabulos, as phrases, e os idiotismos de outra:

Ponde um bello nariz alvo de neve
N'uma formosa cara trigueirinha;

O nariz alvo no moreno rosto,

Tanto não é belleza, que é defeito.

He de ponderar que não permanecendo as linguas sempre no mesmo estado, mas antes soffrendo continuas alterações, póde dar-se o caso de haver maior similhança entre ellas em determinadas epochas, e pelo volver dos tempos apresentarem já differenças muito caracteristicas. «Não he de admirar, diz um eru<«<dito philologo, que nos viesse tanta copia de termos da lin<«<gua franceza, porque no tempo antigo era esta lingua mais co

1 O Academico Antonio das Neves Pereira- Ensaio Critico (Mem. de Litt. da Ac. R. das Sienc.)

«herente com a nossa do que hoje. Os francezes dizião, como os << hespanhoes, sique, por assim que, de modo que, de sorte que <«<etc. Souloir era em francez, como para nós soer, ou soher, do << latim solere; e os francezes deixárão aquelle termo quasi ao <«< mesmo tempo, que nós deixámos o nosso, em logar do qual << tomárão, s'accoutumer, e étre accoutumé, costumar ou ser cos<< tumado. Dizião prouesses, como nós proezas, em logar de gran« des actions, de que hoje usão; moustier, como nós mosteiro: «moult do latim multum: ou como os nossos antigos moito: « Certes, como nós ha pouco diziamos certo, por certamente, ou «na verdade. »>

Além disto, he mister saber que o Conde D. Henrique veio de França com sua familia e tropas, e que esta colonia franceza introduzio entre nós muitos vocabulos e phrases, que se naturalisárão e encorporárão no idioma portuguez. A rainha D. Mafalda trouxe muitas damas, e cavalleiros francezes; aportárão depois ás nossas praias os cruzados, que ajudárão o Sr. D. Affonso Henriques a tomar Lisboa, e se estabelecerão em Portugal, povoando varias villas e logares: e mais tarde entrou em Portugal D. Affonso III com sua mulher a condessa de Bolonha, D. Mathilde, trazendo grande comitiva franceza, assim de senhoras da sua côrte, como de tropas para sua defeza. O brilhante reinado de D. Ioão 1, esse periodo glorioso da nossa historia, foi tambem uma epocha em que a lingua franceza floreceu em Portugal. «Era naquelle tempo, diz o nosso elegante Fr. Luiz de Sousa, a lingua franceza estimada e corrente entre os principes por corteza e politica. » E com effeito, este mesmo apuradissimo classico, na magnifica descripção do Convento da Batalha, menciona todas as divisas de D. João 1 e de seus preclaros filhos, sendo para notar que todas as lettras erão em francez. A de D. João 1 era: il me pláit, pour bien;—a do Infante D. Pedro (Duque de Coimbra) désir;-a do Infante D. Henrique, talaint de bien faire;—a do Infante D. João (Mestre de S. Thiago) je ai bien raison;—a do Infante D. Fernando, le bien me plaît. Todos estes acontecimentos forão parte para que se introduzissem na nossa lingua muitos termos de origem franceza.

Se porém naquelles tempos encontramos um grande numero de vocabulos, que mostrão quanta similhança havia entre ambas as linguas, he certo que posteriormente tomou a nossa lingua outro caracter, e se tornou inteiramente diversa, por maneira que não póde já hoje haver a mesma liberdade de introducção

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