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«que trabalhão em compôr hum Diccionario da nossa Lingua. «Lisboa 3 de Janeiro de 1781.»

O plano que o Author seguiu foi o de enfiar pela ordem alphabetica os nomes, verbos, formulas e modos de fallar, que encontrou e notou nas Decadas. Daremos um exemplo, tirado da letra A.

«A Deos Misericordia. Fraze tirada do que costumam os «<mareantes, que he na occasiam da tormenta chamar por Deos <«que lhes acuda; e com ella (formula) costuma explicar Barros <<o perigo e destroço das náos.

«I. V. 9.» Conveo-lhe cortar as amarras, e fazer-se á vella <<via deste reyno a Deos Misericordia.

«II. I. 7.» Partiram-se a Deos Misericordia sem piloto. «III. IV. 5.» E avendo dous dias que andavam na lingua «das ondas a Deos Misericordia, chegaram a terra. »

Entendemos que o presente feito á Academia foi de valor, e que ainda hoje o tem.

ENSAIO SOBRE A FILOLOGIA PORTUGUEZA POR MEIO DO EXAME E COMPARAÇÃO DA LOCUÇÃO E ESTILO DOS NOSSOS MAIS INSIGNES POETAS, QUE FLORECÊRÃO NO SECULO XVIpor Antonio das Neves Pereira.—Com esta epigraphe:

Docemente suspira, doce canta

A Portugueza Musa, filha, herdeira

Da Grega e da Latina, que assi espanta.

FERR. Cart, liv. 2. Cart. 10.

(Premiado na Sessão da Acad. R. das Sc. de 12 de Maio de 1792.)

O erudito author assenta primeiramente os seguintes principios:

Á proporção que a Poesia se cultiva, cresce o progresso das linguas, e respectivamente, quanto mais uma lingua se cultiva, tanto mais perfeitas serão as obras da Eloquencia, e Poesia.

A Poesia abraça uma grande multiplicidade de objectos, e por isso carece de uma immensa variedade e abundancia de expressões e estylo, para poder pintar as differentes partes do seu objecto universal.

A Poesia tem por fim a pintura dos objectos da natureza bella, mas uma pintura que falla á alma, ao mesmo tempo que aos ouvidos. Daqui vem a necessidade que ella tem de uma lingua harmoniosa e imitativa, por maneira que não só mova o

animo com a expressão dos sentimentos, e com o colorido das imagens, mas tambem encante o ouvido com a belleza physica dos sons.

Se uma lingua fôr assaz rica, e assaz imitativa para satisfazer a todas as exigencias poeticas, para pintar em todos os generos da Poesia, hade necessariamente fornecer elementos adequados para as producções pastoris, lyricas, tragicas, comicas, epicas, epigrammaticas, etc.; e vice-versa, cada um desses generos de poesia hade concorrer para o seu augmento e perfeição particular, por meio de varias modificações do estylo, segundo a sua diversa especialidade.

Lancemos com o author um olhar attento sobre cada um desses generos de poesia:

Pastoril. Os pastores não analysão as idéas, não as compõem; toda a sua phrase consta, pela maior parte, de imagens, e de sentimentos. Predominão nelles as sensações sobre a reflexão; e o seu estylo he todo figurado. Tal he a linguagem da natureza, pobre de vocabulos, abundante de imagens; e tal he a que convem neste genero de poesia.

O estylo Lyrico exclue a analyse systematica, de que ordinariamente faz uso o homem que se occupa de discorrer, de meditar, de reflectir. O estylo Lyrico he o estylo das metaphoras, das allegorias, e comparações.

Estylo Tragico. Os authores tragicos põem em scena as paixões humanas, os mysterios do coração, os diversos movimentos da alma, e ora lhes he preciso ser vehementes, ora patheticos, ora animados e fogosos, ora brandos e ternos; umas vezes pintão o homem arrebatado de alegria e de enthusiasmo, outras vezes repassado de tristeza e desalento, etc.; do que facilmente se comprehende, quanto este genero de Poesia conduz ao exercicio da lingua, modificando diversissimamente às suas phrases conforme as acções, as intrigas, os caractercs dos actores etc.

Estylo Comico. Concurso da naturalidade com o artificio da imitação, nos discursos, nos caracteres e nas acções; eis o typo do verdadeiro estylo comico; viveza de engenho, e ao mesmo tempo uma grande delicadeza na pintura dos defeitos do homem, da desigualdade do caracter, de excentricidades mil, de tendencias viciosas, etc. etc., eis os requisitos necessarios ao Poeta que põe a moral em espectaculo, e quer satisfazer ao preceito ridendo castigat mores.—«Quando o Poeta sabe fallar na sua lin«<gua a linguagem de todos os estados de pessoas, e no tom que

«convem ao cortezão, ao paizano, ao sabio, e ao ignorante: quem «duvída, que parecendo então exhaurir a sua lingua, a aug«menta indizivelmente?»>

Estylo Epico. O poema epico, comparado com a tragedia, tem por objecto uma acção heroica mais prolongada e mais duravel; admitte maior numero e variedade de incidentes, não só do que a tragedia, mas tambem do que todos os outros poemas; tem, nas pinturas, uma liberdade amplissima; a acção, supposto que menos animada, que na tragedia, he com tudo capaz de excitar nos animos a perturbação, o terror, a compaixão. «O «<estylo epico puro predomina nas paixões mais brandas, e nas <«<situações mais tranquillas, onde a inspiração presumida per«mitte ao Poeta usar de maior pompa, e tomar um tom mais «elevado, admittindo as imagens de todos os tempos, de todos os <«<climas, de todas as condições da vida humana. Do que se col«lige, que ainda quando hum Poema Epico não seja escrito se «não em prosa poetica e harmoniosa, necessariamente hade en«riquecer, e polir muito a lingua.»>=

Assentados estes principios, que na Memoria são convenientemente desenvolvidos, passa o author a examinar a locução e estylo de diversos poetas nossos, profundando mais o que pertence ao estylo da Lingua, do que o que he mais propriamente estylo do author.

Admittindo, porém, que os Poetas sejão os melhores mestres da Lingua,—¿quaes dos nossos poderião ser escolhidos pelo author da Memoria, como sendo os mais proprios para o exame a que elle se propoz?-O author considerou como um thesouro da nossa Lingua as producções poeticas de Camões, Ferreira, Bernardes, Miranda, e Caminha, como sendo estes poetas os espiritos mais raros que as boas Musas tinhão reservado para a gloria de Portugal, n'um seculo, que foi a época mais feliz da Lingua, e da Litteratura Portugueza.

Com effeito, florecerão estes Poetas, brilhando diversamente, no mesmo seculo; e para que o Leitor o veja de um lançar de olhos, poremos aqui a data em que deixou de existir cada um delles:

Camões falleceu no anno de 1579.
Ferreira

>> >> 1569.

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¿Mas não tem cada um desses poetas um estylo particular, ainda no caso em que se occupão do mesmo genero de poesia? -Sim, tem; mas apesar dessa diversidade, entende o author da Memoria que a nossa lingua se acha toda inteira nestes insignes poetas, em quanto ao que elle chama precisamente espirito da lingua; e para melhor explicar o seu pensamento, accrescenta que nesses poetas se encontra a nossa lingua-toda no mesmo vigor, no mesmo genio e caracter nacional, com que hoje a fallamos; na mesma flexibilidade em representar as idéas do entendimento, os voos da imaginação, os sentimentos ou affectos do animo: na mesma copia, variedade, ingenuidade, graça, energia, rapidez, vehemencia, sublimidade.

A lição, pois, das diversas producções desses poetas, em todos os diversos generos de poesia, póde servir de regra para fixar uma Analogia exacta da nossa Lingua, e discernir os seus idiotismos, e anomalias. Neste sentido, e para similhante fim, começa o author da Memoria a examinar o estylo comico, tragico, epico, pastoril e lyrico desses poetas.

No exame da locução e estylo comico de Ferreira, Miranda, e Camões, analysa o Cioso do Ferreira,-os Estrangeiros de Miranda;-não encontra em Camões a vis comica, nem o perfeito estylo comico, tendo por isso como inutil buscar aqui ou alli, nas comedias de Camões, alguma expressão, ou pensamento felizes.

Examina depois o estylo heroico-tragico de Ferreira, occupando-se longamente da tragedia Castro; julgando que Ferreira soube imitar os antigos sem servilismo, e concorreu, por outro lado, para aperfeiçoar a lingua, communicando-lhe elegancia, delicadeza, e elevação. Não perde o author da Memoria a opportunidade que se lhe offerece de louvar Ferreira, pelo amor que tão apaixonadamente consagrou á lingua portugueza, e pelo serviço que fez à poesia com a introducção do verso solto.

Trata depois largamente do estylo heroico-epico de Camões. No seu estylo se achão, diz o author, todas as riquezas da nossa lingua, e se descobrem os solidos meios de as podermos multiplicar. Do que podemos concluir, que de todos os nossos Escriptores nenhum ha, a quem a Lingua Portugueza seja mais devedora do que a Camões; e quando nella não tivessemos outro algum monumento, mais que os Lusiadas, este só bastaria para mostrar ás nações cultas as bellezas, de que a nossa lingua he capaz.

-Trata logo do estylo pastoril de Sá de Miranda, e opina que he elle mais vasto, mais copioso, e incomparavelmente mais natural do que o antigo Pastoril, que só constava das pinturas physicas da Natureza, e sobre tudo da galanteria campestre. Os pastores de Sá de Miranda são sempre, e em tudo Pastores, isto he, homens capazes de sentimento, posto que não versados em discursos profundos. No grave estylo de Sá de Miranda ha brevidade, e concisão na phrase, e este atticismo he o seu caracteristico.

-Bernardes merece, no conceito do author da Memoria, pelas bellezas de locução, e estylo Pastoril, o titulo de Principe dos Poetas neste genero.

-«As Eclogas de Camões tem aqui e alli algumas decorações pastoris, que são como lugares communs neste genero: os seus versos são de grande suavidade e doçura, e o estylo faz uma illusão agradavel pela propriedade das expressões, pela elegancia; sobre tudo he admiravel nas pinturas physicas; nada lhe falta serão a ingenuidade, o tom pastoril, e aquelle molle atque facetum, que a Musa Latina concedeu a Virgilio, e a Portugueza a Bernardes. Ninguem melhor, do que Camões, teria esta vantagem, se como outro Ovidio, se não entregasse á natural facilidade, e fecundidade do seu engenho: com mais juizo, e menos de viveza seria Principe neste genero de Poesia, como he nos outros.» -Caminha. «Pelo que pertence ao estylo pastoril, sómente temos deste Poeta quatro Eclogas, as quaes todas são de invenção simples, mas um modelo de propriedade, e elegancia de linguagem e como a ingenuidade e singeleza não excluem a delicadeza de sentimentos, esta se acha de quando em quando nas Eclogas de Caminha.>>

Mas basta; levar-nos-hia muito longe a tarefa de acompanhar o erudito author no exame a que se propoz. Talvez em demasia nos detivemos neste artigo; mas foi necessario dar uma idéa deste importantissimo escripto, fazendo sentir a sua importancia, e merecimento, tanto quanto póde conseguir-se por meio de um extracto muito succinto e incompleto.

-OBRAS POETICAS de Francisco Dias Gomes.-1799.

Esta obra foi mandada imprimir pela Academia Real das Sciencias, a beneficio da viuva e orphãos do author. Honra e louvores mil á Academia por ter tomado uma resolução tão caritativa, alliando assim o exercicio da santa virtude da benefi cencia com o proposito de enriquecer as nossas Lettras!

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