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corro lhes não servem os vocabulos completos, quando identicos, ou ainda mesmo um tanto alterados nas suas desinencias, e feições? Se a lingua latina diz, por exemplo, monstrare, minutus, frenum, arena, mensa, e a portugueza diz: mostrar, miudo, freio, aréa, mesa, como não acharemos estreitas relações entre as duas linguas, que nestes nomes se apresentão uniformes e unisonas? Será bastante rasão para excluirmos essa identidade a circumstancia da exclusão da letra n nas mesmas palavras em que a latina a empregou? Será tambem rasão bastante esse quasi imperceptivel matiz de diversidade de desinencia? Ninguem o dirá. Apresentemos, porém, outras series de palavras latinas e portuguezas, para tornar mais sensivel esta idéa. Os latinos dizião: nubes, imago, margo, homo; e nós dizemos: nuvem, imagem, margem, homem. Os latinos dizião: numen, nomen, lumen, pecten, gluten; e nós dizemos: nume, nome, lume, pente, grude; os latinos dizião: ars, mors, fons, sors, pons, mons, dens, e nós dizemos: arte, morte, fonte, sorte, ponte, monte, dente. Quem não vê a permanencia dos mesmos sons, do mesmo formal dos vocabulos, a despeito das leves modificações de desinencias, ou da differente collocação, ou mesmo perda de uma lettra?-Por estes exemplos, e infindos outros que podéramos apresentar, vêse que fôra impossivel, direi mais, fôra até absurdo desprezar, na apreciação da affinidade das linguas, o elemento da identidade dos vocabulos, maiormente quando elles apresentão os mesmos sons e a mesma significação. Outro sim he claro, que menos bem se houverão os authores que derão maior importancia ás indicações da grammatica, do que ás dos diccionarios, pois que, em ultima analyse, estabelecerão pela sua doutrina uma preferencia injusta do accidental sobre o real e essencial.

Se considerassemos os vocabulos unicamente como signaes de sons, e seus depositarios na escriptura, abstrahindo do destino que elles têem de significarem e exprimirem o pensamento, he evidente que nada mais serião então do que entidades sonoras, estereis e sem a menor importancia psychologica. Mas o caso he outro; e a não ser assim, a ethnographia nada mais seria do que o trabalho vão de uma curiosidade pueril. A ethnographia, quando decompõe e analysa as raizes, considera-as como indicadoras de idéas, e por força de maior razão os vocabulos completos. Se pois os vocabulos são tomados como reveladores das cogitações humanas, como interpretes do pensamento, como expressão sensivel de idéas, he indubitavel que formão a essencia das linguas,

e que a grammatica, dando-lhes uma fórma, coordenando-os no discurso oral ou escripto, nada mais he do que um accidente, variavel segundo o maior ou menor adiantamento dos povos, segundo o maior ou menor desenvolvimento da sua intellectualidade. «Les racines et les mots, diz Klaproth, sont l'étoffe des <«<langues: la grammaire donne une forme à cette étoffe; les lan<«<gues ne changent pas essentiellement, de même que le diamant «<reste toujours diamant, de quelque manière qu'il soit taillé.»

He neste sentido, que o sabio Humboldt disse: «As noções <«grammaticaes residem muito mais no espirito dos que fallão, «do que na parte das linguas que póde chamar-se material.>> E com effeito; o estudo das fórmas grammaticaes, das variações da syntaxe, e da indole das linguas, he interessantissimo para avaliar e conhecer os progressos e aperfeiçoamento do espirito humano, mas de bem pouco ou nada servirá para determinar a derivação ou filiação das linguas, porque a grammatica he um elemento variavel, accidental, transitorio, em quanto que as raizes, e os vocabulos que dellas se formão, são estaveis, conformes, e identicos, ou pelo menos sempre susceptiveis de serem reconhecidos.

Parece pois destituida de todo o fundamento a seguinte opinião de João Pedro Ribeiro (opinião que, como vimos, adoptou tambem o Sr. P. S. Luiz, e antes delle Girard e Beauzée): «A «affinidade e filiação dos idiomas não se deduzem da similhança << dos vocabulos, mas da sua syntaxe, e mechanismo, em que as <«< linguas da Hespanha se distinguem evidentemente da Latina, «e dos outros povos, que nella entraram. >>

E pelo contrario parece muito plausivel a seguinte doutrina do Sr. A. Herculano: «O pensamento de Girard e Beauzée e dos que o imitaram e traduziram é paradoxal e falso, assim no concreto da questão especial que nos occupa, como no absoluto da theoria que estabelecem de rejeitar as similhanças dos vocabulos para deduzir as origens exclusivamente das formulas grammaticaes ou indole da lingua. Os serviços que a Ethnographia tem feito nestes ultimos tempos á historia seriam em boa parte annulados se tal doutrina se houvesse de admittir. É empregando os dois meios, o da grammatica e o das palavras, que se tem podido chegar a estabelecer as grandes familias das linguas, e a respeito daquellas a que por imperfeitamente conhecidas não é ainda possivel applicar o primeiro, os maiores ethnographos não tem duvidado em classifical-as usando só do segundo, quando é evidente a analogia radical de duas linguas nas palavras que re

presentam as idéas mais simples e necessarias a qualquer povo, embora selvagem, ou apenas entrado na infancia da civilisação.»> (Panorama 14 de Dezembro de 1844).

Na Carta de Malte-Brun a Balbi, inserta na Introducção ao Allas Ethnographique du Globe, lê-se o seguinte pensamento: <«< Outre les résultats que produit le mélange pur et simple des << idiomes, considérés comme des ensembles de racines, il faut « encore reconnaître la libre action de l'intelligence humaine, « qui en modifie à on gré les formes grammaticales, et qui peut « méme assujétir des idiomes entièrement divers à une législa«tion commune. »

Se por este ponderoso motivo não podem as formulas grammaticaes fornecer um principio geral e absoluto de classificação, muito menos podem regular o exame da filiação de determinadas linguas, por isso que póde succeder que dois idiomas se assemelhem nas formulas grammaticaes, e com tudo pertenção a diversa familia, e vice-versa, que entre elles haja antinomía de indole, e comtudo pertenção á mesma familia. «Lorsque deux << langues, diz M. Klaproth, ont perdu cet air de famille qui les <«< fait reconnaître, du moins cette incertitude ne nuit pas aux <«< conséquences qu'on peut tirer de la ressemblance de leurs << mots. Par exemple, on ne doute plus aujourd'hui que le per<< san et l'allemand n'appartiennent à la même famille; mais si << l'on n'avait comparé que les grammaires de ces deux langues, << on aurait difficillement obtenu ce résultat; de même qu'on ne << trouverait qu'avec peine des ressemblances entre l'anglais et <«<l'allemand, à ne considérer que la grammaire de ces deux idio<< mes, et sans s'attacher à l'examen des mots. >>

O methodo comparativo applicado á grammatica he incontestavelmente muito apreciavel; mas parece mais proprio, como já indicámos, para nos guiar no estudo dos progressos do espirito humano. E tanto he isto assim, que esse methodo applicado a differentes periodos de um dado povo póde dar em resultado certas modificações grammaticaes de grave ponderação, apresentando diversas phases de indole na mesma lingua. E porquê? << Por isso, que as linguas, como admiravelmente diz o Sr. Her<«< culano, seguem sempre, especialmente na syntaxe, o desenvol<<< vimento ideologico dos povos que as fallam. Á proporção, que <«< as idéas se multiplicam e novas relações se vão encontrando << entre ellas-que estas se tornam complexas por um lado, e «por outro se vão subdividindo-que emfim os elementos do

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cogitar humano, se coordenam, é caso impossivel imaginar, <«<que a fórma objectiva não se altere e não siga as alterações << do verbo interior....... Leamos uma pagina do Nobiliario at<< tribuido ao Conde D. Pedro, uma cantiga do cancioneiro an<< tigo, um capitulo de Fernão Lopes, ou da Traducção da His<«<toria Biblica: imaginemos, como exprimiriamos o que lemos << na linguagem de hoje commum desaffectada. Que acharemos? «Não será uma palavra, ou outra antiquada, para substituir, <«<mas a successão dos vocabulos para alterar, proposições para << trocar, syntaxe para regularisar, verbos para reduzir a outras << terminações nos seus tempos e modos. Se desattendessemos o << vocabulario para só acceitar, como prova da filiação as provas <«< da grammatica, ficariamos ás vezes perplexos sobre se deveria<< mos conceder, que o portuguez de hoje seja o mesmo idioma, << ou antes idiomas, de que usavam os nossos avós nos seculos « 13.°, 14.° e 15.»

Cremos pois estar demonstrado que, no exame da filiação das linguas devem preferir-se as conclusões, que resultão da comparação dos vocabularios, ás que se poderião tirar de certas affinidades, ou antinomia de indole.

2. Parte.-Appliquemos agora este principio à nossa hypothese.

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Denina analisa na sua obra o primeiro soneto de Camões, e só encontra uma palavra, que julga não derivada do latim.O soneto he o seguinte:

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1 LaClef des Langues. Tom. 2. Part. 4, Sect. 2., Art. 24.

Verdades puras são, e não defeitos;
E sabei, que segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

E a palavra enganos he a unica, que elle julga não derivada do latim; se bem que haja quem a derive do latino ingenium, embora outros authores a tenhão por celtica.

Toma depois seis estancias do canto 9.o dos « Lusiadas », e procedendo á mesma analyse, obtem o mesmo resultado, com referencia á lingua latina, chegando a traduzir litteralmente duas passagens do nosso poeta em latim, para melhor fazer notar a conformidade das duas linguas.

O poeta disse:

Mas firme a fez, e immovel, como vio,

Que era dos nautas vista e demandada.

E Denina traduziu assim para o latim: «magis firmam illam fe« cit, et immobilem, cum vidit quod erat de (ab) nautis visa, et « demandata. (Ce dernier mot « demandata» est latin barbare << dans le sens qu'il a ici, et généralement dans toutes les lan«<gues sorties de la latine.)

O poeta disse:

se adornavão

Na formosa ilha alegre e deleitosa :

Claras fontes e limpidas manavão

Do cume, que a verdura tem viçosa: etc.

O Denina traduz: «Se adornabant in illa formosa insula, et « alacri, et delectosa, clara fontes, et liquida manabant.» 1

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Continuando esta comparação dos vocabularios latino e portuguez, se tanto fosse necessario, chegariamos á conclusão de que apenas uma mui limitada parte da lingua portugueza he estranha á latina.

1 Só em uma palavra destas estancias me parece ter-se enganado Denina, e he a palavra «viçosa» que elle deriva de outra que em italiano tem a significação de bella, quando aliás vem do verbo latino vigeo.

Denina leu liquidas em vez de limpidas; mas a sua observação tem igual fundamento, por isso que a palavra portugueza limpidas he a latina limpidus.

a. um.

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