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Mas esses grandes luminares são uma excepção feliz,— são astros que girão solitarios na immensidade do espaço,—são uma demonstração viva do talento com que a natureza fadou os nossos conterraneos;—mas nem o seu elevado engenho, nem os seus magnificos escriptos podem, em boa logica, fornecer argumento para asseverar que em Portugal se dá á Litteratura a importancia que ella tem essencialmente, e muito menos que ella seja professada com a extensão, amplitude, e desenvolvimento que lhe cabem.

E não se pense tão pouco que eu desconheço a excellencia de um certo numero de Memorias de Litteratura, que, por boa fortuna, tantos sabios Portuguezes teem escripto. Serão sempre apreciadas e lidas com grande proveito essas Memorias, que dão testemunho do mais apurado gosto, de judiciosa critica, de uma vasta erudição. Assim, por exemplo, se quizermos saber com todo o fundamento, e com solido conhecimento, assente em seguras bases, o que de mais averiguado póde admittir-se, e asseverar-se ácerca do nosso immortal Camões, será indispensavel lêr com séria attenção o que a respeito da vida e obras do grande author dos Lusiadas escreverão o douto Bispo de Viseu, e outros Litteratos dos nossos tempos. E ainda mais do que fonte de bons conhecimentos devemos encarar essas preciosas Memorias que possuimos; entendo até que as podemos considerar como excellentes modelos no vasto campo da Litteratura, não só em quanto á critica, mas tambem no que toca á linguistica, á philologia, á oratoria etc.

Mas de tudo isto a um corpo systematico de doutrina, a um professorato cabal de Litteratura entre nós, vae uma distancia incommensuravel. Entre o que possuimos, e o de que precisamos indispensavelmente, ha um vacuo immenso que convém encher, ainda á custa dos maiores sacrificios. Entre as exigencias da natureza das cousas e o estado dos estudos, do ensino, dos elementos, que entre nós existem, medeia um vasto deserto, que a todo o custo devemos reduzir a cultura e tornar habitavel.

A Litteratura propõe-se essencialmente a apresentar-nos um quadro vivo do homem, tal qual elle he em geral, e em particular, isto he, antes e depois de receber as impressões profundas do clima, das leis, dos diversos estados da civilisação, e de circumstancias mil que o modificão.

Este simples enunciado basta para nos habilitar a fazer uma resenha dos elementos que constituem a Litteratura. E com effeito,

o Litterato deve possuir o conhecimento da linguagem com todo o cortejo immenso das questões ethnographicas; da Epopéa heroica, e comica; da Tragedia, e da Comedia; das differentes especies de satyras, contos, fabulas, romances; dos Tratados dos Moralistas; da historia antiga e moderna; da eloquencia, applicada ás differentes especies de composição, e a cada scena particular do drama da vida humana; da arte de pensar, que chama a razão em soccorro da faculdade inventiva, e gera a hermeneutica e a critica para entender e julgar as obras dos outros.

E se este enunciado a priori, inteiramente deduzido da theoria, não satisfaz de todo ponto o nosso espirito, recorrâmos á parte prática da sciencia, e por certo que a nossa convicção ficará assente em solidas bases. Lancemos um rapido olhar sobre os escriptores mais notaveis da Litteratura antiga e moderna-e desde logo conheceremos que todos esses elementos, que acabo de mencionar, entrão essencialmente na constituição organica, se assim posso dizer, da Litteratura. Entre os Gregos, encontrâmos Pithagoras, Eschylo, Sophocles, Euripides, Aristophanes, Platão, Socrates, Xenophonte, Epitecto, Epicuro, Theophrasto, o Portico, a Academia, Plutarcho, Luciano;-entre os Romanos: Lucrecio, Cicero, Tito Livio, Virgilio, Ovidio, Phedro, Seneca, Tacito; entre os modernos: Shakspeare, Milton, Pope,-Dante, Ariosto, Machiavello,— Montaigne, Labruyère, La Rochefoucault, Pascal, Bossuet, Fénélon, Massillon, La Fontaine, Molière,—Fielding, Richardson, Le Sage, Jean Jacques Rousseau,-Barros, Sá de Miranda, Camões, Vieira, etc. etc. etc.

Lendo os immortaes escriptos, as admiraveis producções de todos esses sublimes genios, e de outros, que fôra longo enumerar, acaso não vemos que elles estudarão e explicárão o homem, tanto na sua essencia e generalidade, como na especialidade dos diversos gráos da civilisação? Não vemos que elles explorárão as minas riquissimas da Litteratura nas diversas regiões da Poesia, da Eloquencia, da Moral, da Historia, da Philosophia e da Critica? E será possivel seguir aquellas aguias em seus vôos altivos, sem adquirir primeiramente a força e destreza, que se tornão indispensaveis para nos arremessarmos ao espaço? Será possivel fazer progressos em uma sciencia que se apresenta com todos os caracteres e titulos de verdadeiramente tal, sem que um systema largo de ensino habilite previamente os que pretendem entrar no sanctuario? Na serie d'esses escriptos, aliàs tão variados, tão diversos nas fórmas, nos objectos, e no fim, como separados no tempo, existe

um corpo de sciencia, com todo o cortejo de verdades encadeadas e methodicamente deduzidas, tendentes a desenhar o quadro vivo do homem, a offerecer as manifestações mais interessantes do desenvolvimento do espirito, rasgos de imaginação, traços do bello moral, descripção das bellezas do universo, revelação dos segredos do coração humano, phases da civilisação dos povos:-e tudo isto encaminhado a tornar melhor o homem, a amenisar-lhe a existencia, a enriquece-lo de bellissimas e importantes recordações, deliciosas imagens, que o distrahem nos dias amargos da doença, na decrepitude da velhice, no affan e penosos trances da peregrinação da vida.

Póde, porém, recear-se, como tão elegantemente disse o douto Bispo de Viseu no elogio de Simão de Cordes, que o estudo das Humanidades, acostumando os Litteratos á suave brandura das Boas Artes, lhes torne temeroso o aspecto severo da doutrina. Além, pizárão um chão macio e semeado de rosas-aqui, encontrão alguns espinhos de difficuldade e trabalho, que offerece o caminho um pouco mais aspero, pelo campo das sciencias. O mesmo douto Prelado se incumbiu de responder a este reparo, dizendo: «<... se o sanctuario he menos ornado que o vestibulo, << tambem he mais augusto e venerando; e talvez o principal uso dos «<ornamentos do vestibulo he convidar á entrada no sanctuario. >>

E com effeito, quem impediu o eloquente Buffon de ser ao mesmo tempo notavel Litterato e grande Naturalista? As obras d'este immortal escriptor são um documento vivo da feliz alliança que póde dar-se entre as Sciencias e a Litteratura, apresentando-nos as severas revelações da Natureza na mais formosa linguagem, e n'um estylo cheio de graça e encantos.

Vêde o Representante de um povo nas Assembléas Politicas, vêde o Advogado, o Artista,―vêde o partido que todos elles tirão da Litteratura! Parece que as suas diversas producções passão atravéz de hum prisma, que magicamente as reveste de bellissimas côres, e lhes communica esse fulgor, esse enthusiasmo, essa graça, que encantão, enlevão, arrebatão.

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Demais d'isso, as sciencias são hoje mais amenas e muito menos aridas do que o forão n'outras epochas, não só porque a influencia da Litteratura chegou já a bafejá-las, senão tambem porque os progressos das differentes edades, favorecidos mais e mais pela benefica animação da Liberdade, teem desembaraçado a estrada, removido estorvos, e tornado mais accessivel o seu sanctuario.

Posto isto, perguntarei: Como se professa, como se estuda entre nós a Litteratura?-Aprendemos imperfeitamente, e muito á pressa, os rudimentos da grammatica portugueza, estudâmos um pouco de latim, de logica e de rhetorica, adquirimos superficiaes noções de historia e de geographia, e em seguimento vamos cursar algumas Faculdades da Universidade.

Mais tarde, se um ou outro d'entre nós começa a reconhecer a importancia, e a apreciar a amenidade, bellezas, e vantagens da Litteratura, então descobre com magoa a insufficiencia das noções que alcançára, e só á força de uma inclinação irresistivel, de um trabalho improbo, e de aturadas fadigas, chega a adquirir alguns conhecimentos, que em todo o caso se resentirão sempre da falta de alicerce e base, que fôra mister haver dado áquelle edificio.

Parece, portanto, a despeito da indisputavel idoneidade da maior parte dos Professores d'estes nossos tempos, que he deficientissimo entre nós o ensino da Litteratura, e que conviria talvez elevar esta á cathegoria de Faculdade, comprehendendo um corpo scientifico de disciplinas, no sentido da resenha que acima deixo exposta.

CAPITULO II.

RAMOS DOS CONHECIMENTOS HUMANOS QUE CONSTITUEM A LITTERATURA ; MISSÃO D'ESTA, E INDICAÇÃO GERAL DO SEU ESTADO EM PORTUGAL.

Les lettres sont comme toutes les choses grandes et pures, comme la justice, comme la vertu; elles ont le privilège d'élever l'âme tout ensemble, et de la calmer. Elles inspirent à la fois l'enthousiasme et la paix.

VILLEMAIN.

Les lettres sont aussi la voix du peuple.

DE BARANTE.

A LITTERATURA, tal como a encarei no capitulo antecedente, póde até certo ponto confundir-se com a Erudição. Mas eu considero esta ultima como um arsenal, onde o litterato vae buscar os meios de interpretar as authores antigos, de descobrir a significação dos monumentos, de fixar as epochas, de caracterisar os usos e costumes dos povos que já desapparecêrão, de deslindar finalmente os acontecimentos, que remotas eras nos legárão confusos.

D'est'arte a Erudição conserva uma estreita alliança com a

Litteratura; he sua companheira, he sua auxiliar, embora tenha cada uma distinctos sacerdotes, diversos templos. Póde, todavia, conjecturar-se que, a não haver uma interrupção fatal nos progressos do espirito humano, realisar-se-ha a esperança de um escriptor estimavel, de que todos os litteratos venhão a ser eruditos, e todos os eruditos sejão litteratos.

A Critica, porém, he uma parte integrante da Litteratura. ¿De que serviria tomar de memoria as producções litterarias dos differentes tempos, se não nos fosse dado estremar as grandes bellezas dos grandes defeitos? O mesmo author, e por vezes a mesma pagina nos apresentão o sublime ao lado do trivial, o verdadeiro ao lado do falso, o natural ao lado da affectação; e deveria, acaso, confundir-se a regra com a aberração? deveria, porventura, medir-se pela mesma bitola a razão, o bello moral, o gosto, e os seus contrarios? «Voici merveille, dizia Montaigne, nous avons plus de poëtes que de juges et interprètes de poésie; il est plus aisé de la faire que de la cognoistre.» Exagerado foi um tanto o amigo de La Boétie, mas ficará sempre em pé o alto apreço em que tinha a Critica, essa filha da Razão, que em sendo guiada pelo facho de sua mãe, e desassombrada de mesquinhas ou odiosas influencias, presta relevantes serviços ao aperfeiçoamento do espirito humano. «Je ne sais en effet si dans les lettres, diz M. Villemain, après l'honneur de produire des beautés originales, il est un titre plus noble que de les admirer avec éloquence, d'en expliquer les merveilles, d'en augmenter le sentiment, d'en per· pétuer l'imitation. »

Se pois he incontestavel o que fica dito a respeito da Critica, não menos devem considerar-se como partes integrantes da Litteratura a Grammatica Philosophica, que presuppõe o conhecimento da ideologia-a Linguistica-a Poesia, na maior latitude dos seus accessorios e diversidade de fórmas-a Oratoria, com todos os generos da eloquencia religiosa, politica, e civil— a Historia, com os seus indispensaveis auxiliares, a geographia e a chronologia-a Moral religiosa e philosophica.

Antes de todos estes elementos figura a Historia Litteraria propriamente dita.

¿Mas como são professados entre nós estes importantissimos ramos da Litteratura? Ensina-se, acaso, estuda-se, aprende-se elementarmente, quanto baste para satisfazer as exigencias naturaes da sciencia, quanto pede e necessita a cultura do espirito e do coração? Não, por certo.

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