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sivamente modificado e alterado pela mistura de fórmas, vocabulos, phrases e expressões da lingua latina?»>=

-Dois SOCIOS DO CONSERVATORIO REAL DE Lisboa. «Opusculo ácerca da origem da lingua portugueza, composto e dedicado ao Ex. Sr. Conselheiro João Baptista de Almeida Garret por dois Socios do Conservatorio Real de Lisboa.» (1844)

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Em refutação do Opusculo que acima apontamos com a designação de Anonimo, pretendem os authores mostrar: 1.o que o latim, introduzido na Peninsula pela conquista dos romanos, não foi, durante o dominio d'aquella nação, a lingua vulgar dos hespanhoes e portuguezes: 2.° que tambem o não foi até ao reinado de D. Diniz, epocha em que, conforme a opinião geralmente recebida, começou a figurar a nossa lingua: 3.o que em a natureza d'estes dois idiomas se dá uma opposição manifesta: 4.o finalmente que o celtico é a fonte genuina do portuguez.

N. B. Não sahiu a lume senão a 1.a parte, que tem por titulo: «<A lingua antiga dos hespanhoes, conservada durante todo o periodo do dominio romano. >>

N'este Opusculo vem estampada uma carta do Sr. Garrett, datada de 18 de Setembro de 1844, na qual se lê o seguinte S « É possivel, sómente direi, que a nossa admiração pelo nosso seculo de oiro, o XVI, cegue alguma cousa os defensores da opinião latina; mas tambem é mais que possivel que a moda, o espirito reaccionario que em todas as coisas dos homens se manifesta em tempos e epochas sabidas, desvaire não pouco tambem os defensores da opinião contraria.»

No paragrapho seguinte apresentaremos em combate a origem celtica, e a origem latina, terceiro ponto do nosso trabalho em quanto á filiação da lingua portugneza.

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ARGUMENTOS DE CADA UMA DAS DUAS OPINIÕES.

Littora littoribus contraria.

Vamos assistir ao combate entre a origem celtica e a origem latina da lingua portugueza. Tomaremos a «Memoria» do Sr. S. Luiz, e a «Refutação» da mesma; faremos um extracto

succinto, mas fiel, dos argumentos de ambas, a fim de que os leitores possão formar um juizo seguro, e decidir entre as duas parcialidades.

ORIGEM CELTICA.

-MEMORIA DE D. FRANCISCO DE S. LUIZ.

Difficuldade ou quasi impossibilidade da mudança de lingua. Difficuldade ou quasi impossibilidade que se encontraria em fazer uma tão substancial e absoluta mudança, qual a do uso exclusivo da lingua latina pela linguagem usada pelos nossos maiores antes da entrada dos romanos no nosso territorio.

1. rasão: Porque os homens conservão a linguagem da infancia com tanta tenacidade, quanta he a que se observa na conservação de todos os habitos, usos e geitos que adquirimos nos tenros annos, e que depois se vão progressivamente fortificando com a pratica quotidiana, contínua, incessante de toda a vida.

2. rasão: Porque nem a dependencia da sujeição dos vencidos, nem a lisonja para com os vencedores, nem a preponderancia da dominação, embora exercitada por uma nação culta, podem extinguir jámais de todo a lingua original, e primitiva de um povo, nem chegar a transformar a sua indole, genio, e caracter natural e proprio, ou a alterar substancialmente as suas fórmas distinctas e essenciaes.

Provas historicas: A historia antiga offerece muitas provas desta asserção. O Egypto foi successivamente subjugado pelos persas, gregos, romanos, e arabes, e comtudo conservou a lingua egypcia até ao seculo xv da era vulgar, devendo notar-se que a lingua arabe não chegaria a naturalisar-se de todo no Egypto, apesar de tão longa dominação, se as barbaridades de tantos seculos não houvessem exterminado a maior parte das familias indigenas. —Os hebreus forão conquistados pelos gregos e pelos romanos, e nem por isso daquelles dois grandes povos pôde extinguir-se, ou ainda alterar-se a lingua nacional e propria. As regiões septentrionaes da Africa forão completamente dominadas pelos romanos, e sem embargo disso a lingua punica era ainda vulgar naquelles logares nos fins do IV e principios do v seculo. Os phenicios e carthaginezes viverão entre nós por alguns seculos, e nem por isso os povos peninsulares adoptárão o seu idioma, posto que delle tomassem muitos vocabulos. ¿Não he certo, por outro lado, que as Hespanhas tiverão longa e estreita communicação e intimo tracto com os arabes?

E comtudo o resultado não foi outro senão o de ficarem entre os hespanhoes muitos vocabulos, phrases, idiotismos, e modos do fallar arabes, que aliás não extinguirão o seu idioma natural.

Conclusão. Parece, pois, inadmissivel o privilegio que se entende tiverão os romanos de fazerem esquecer aos habitantes indigenas a lingua natural, para adoptarem um idioma estrangeiro.

Differença de genio, indole e caracter das duas linguas.— Reconhecida a intima e essencial ligação que tem a linguagem com o pensamento, he obvia a difficuldade, ou antes impossibilidade da mudança total da linguagem antiga portugueza para a latina, maiormente dando-se entre ellas tamanha differença de genio, indole e caracter.

¿Em que consistem o genio, a indole e caracter dos varios idiomas? Em que consiste aquelle pensar proprio de cada um delles? Na estructura e construcção desses idiomas,―na ordem e ligação com que dispõem os seus vocabulos, a fim de fazerem mais clara e energica a imagem do pensamento,―nas differentes fórmas grammaticaes, com que modificão os vocabulos, -no emprego e logar que lhes dão no discurso. Não são, diz Girard, os vocabulos que as linguas tomão umas das outras, nem as etymologias, que nos hão de dar a conhecer a origem e o parentesco dos idiomas; mas sim o genio e caracter de cada um.

Comparemos debaixo deste aspecto as duas linguas:

Casos.-A lingua portugueza não tem (senão sómente em alguns pronomes) aquellas variadas fórmas, a que os grammaticos latinos chamão casos, e pelas quaes exprimem, bem como os gregos, em um só e o mesmo vocabulo, varias e differentes relações da mesma idéa.

Transposição.-Carece, por consequencia, da ampla liberdade de que a lingua latina usa na sua construcção, e não lhe são naturaes e proprias as inversões, que encontramos nos nossos escriptores, principalmente dos seculos XIV, XV e XVI.

Verbos. He differente o uso que cada uma das duas linguas faz dos verbos:

Têem os latinos as vozes passivas dos verbos formadas das proprias vozes activas, modificadas com diversas terminações; e os portuguezes não têem essas particulares fórmas.

Se os verbos auxiliares, empregados na formação das vozes

passivas, privão a lingua portugueza da concisão latina, por outro lado dão-lhe a vantagem da variedade, e de maior exactidão de pensar; assim, por exemplo, a fórma latina lego póde ser reproduzida no portuguez do seguinte modo: leio, estou lendo, ando a lér, venho de ler, etc.

O verbo auxiliar estar, que de algum modo póde considerar-se um como segundo verbo substantivo, exprime uma idéa de coexistencia no estado actual, que não se reproduz no latim com igual simplicidade. Assim, dizemos Pedro he doente, Pedro está doente, e o latim diz sempre Petrus est, etc.

He particularissimo o idiotismo com que a lingua portugueza dá á fórma dos verbos no infinitivo as inflexões proprias e caracteristicas das pessoas e dos numeros, fazendo, v. g., do infinitivo ser as fórmas pessoaes e numericas seres, sermos, serem.

Adverbios. Admira, que, sendo a lingua portugueza filha primogenita da latina (como querem), não herdasse della uma só das fórmas ou terminações em ter dos adverbios latinos; adoptando em logar dellas a terminação mente, que, por erro etymologico, se tem pretendido derivar do ablativo latino de mens.

Comparativos, superlativos, diminutivos, augmentativos, particulas.- He igualmente para admirar que não passassem do latim ao portuguez senão tres ou quatro fórmas comparativas em or; que só no seculo xv se adoptassem as fórmas superlativas ou ampliativas em issimo, tão frequentes no latim; que engeitasse quasi todas as terminações diminutivas e augmentativas dos vocabulos latinos, conservando as suas proprias, ou adoptando outras, que certamente lhe não vierão do latim.

Idiotismos, adagios, rifões.-Temos na lingua portugueza um grande numero de idiotismos ou phrases particularissimas, e não menos de adagios, annexins ou rifões, que se não podem traduzir em latim senão abandonando o sentido litteral.

Artigos.-Fomos buscar na imitação das melhores linguas da antiguidade os artigos indicativos o, a, os, as, que a nossa presumida mãe ignorava quasi de todo.

Vocabulos vindos do latim.-Os vocabulos e fórmas que a lingua portugueza tomou da latina, nem são tantos em numero, como vulgarmente se suppõe, nem servem todos para demonstrar a supposta filiação. ¿Por que rasão? Por que desse numero devem riscar-se:-1.°, as interjeições, as quaes, de sua natureza, forçosamente se hão de achar, em grande parte, identicas e invariaveis em qualquer idioma;-2.°, os onomatopeicos, ou

imitativos dos sons, ou das outras qualidades sensiveis dos objectos, taes como assobio, grasnar, huivar, grunhir, etc., communs a todos ou a muitos dos idiomas;-3.o, a numerosissima familia dos que compõe o diccionario da infancia, formados de articulações labiaes, identicos ou similhantes, tanto como indispensaveis, communs a todas as linguas, e não susceptiveis de derivação de uma para outra lingua;-4.o, os que têem no portuguez uma raiz donde facilmente podião ser trazidos pelo natural artificio do idioma;-5.o, os que a lingua portugueza derivou e compoz d'um só, ou de poucos vocabulos latinos, v. g., de pedra, pedraria, pedregulho, pedrisco, etc.;—6.o, os que nós e os latinos tomamos da lingua grega;-7.°, os que sendo proprios da antiga lingua lusitana, passárão ao latim.

Introducção no portuguez de pequeno numero de vocabulos antigos. Vem, pois, a ficar muito reduzido o numero dos vocabulos portuguezes, que em rigor se podem ter como derivados do latim; muitos, porém, desses mesmos, que em realidade nos vierão daquelle idioma, não servem para provar a supposta filiação, porque forão trazidos ao portuguez muito depois da epocha em que se suppõe haver o latim sido vulgarmente usado em Portugal. Nisso tiverão parte os nossos escriptores dos seculos XV e XVI, que trabalhárão em formar, enriquecer e polir o idioma patrio, á custa da lingua latina.

Vocabulos pertencentes á lingua ecclesiastica, á jurisprudencia. Muitos dos vocabulos, tomados immediatamente do latim, pertencem á linguagem ecclesiastica, e outros muitos á da jurisprudencia, e todos estes, constituindo um como idioma universal na Europa, não podem provar a filiação de nenhuma lingua particular.

Juizo sobre certas composições latinas-portuguezas.-Essas composições affectadas e ineptas, que se diz serem juntamente latinas e portuguezas, taes como:

O quam divinos acquires terra triumphos,
Tam fortes animos alta de sorte creando, etc.

nem são verdadeiro latim, nem verdadeiro portuguez, porque não têem o caracter, nem seguem as leis de um ou outro idioma.

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