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tecipadamente a quem notar a falta de muitos exemplos que não deveramos ter omittido. Se esta primeira tentativa fôr acolhida com indulgencia, não hesitaremos em dar publicidade a outra serie de exemplos que temos recolhido.

Cumpre-nos, finalmente, prevenir os leitores de que não seguiremos uma ordem systematica (fundada na chronologia, nacionalidade, e outros elementos de classificação); antes daremos á nossa exposição a maior variedade, que arredar possa o inconveniente da monotonia.

No Macbeth de Shakspeare (Acto IV, scena III) ha um exemplo admiravel de sublime, que talvez, como observa Chateaubriand, não tem igual na litteratura (reste sans parallèle).

Estando em scena Malcolm e Macduff, vem um nobre escossez, Rosse, dar a Macduff a noticia de que o seu castello fôra tomado, e que a esposa e os filhos haviam sido barbaramente assassinados.

Macduff ouve silencioso a fatal noticia, e como continuasse a permanecer taciturno, Malcolm lhe diz que desaffogue a dôr, soltando palavras; a dôr que não falla, murmura lá dentro do peito, e como o coração está muito cheio, estala e quebra-se.

Macduff rompe a final o silencio, e pergunta:
-Meus filhos tambem?!

-Rosse. Esposa, filhos, servos... tudo quanto poderam encontrar!

Macduff. E eu não estava com elles!... Tambem assassinaram minha mulher?

-Rosse. Já vol-o disse.

-Malcolm. Recobrae animo! Pensemos na vingança, e será ella o remedio que ha de curar esta offensa mortal! Macduff. Sim; mas elle não tem filhos!...

Este grito, arrancado ao coração de um pae pela dôr mais intensa e pungente; este grito, quasi barbaro, que

acode subito e irresistivel a um impulso de vingança; este grito é admiravel, é grande, é sublime, ou não ha hi sublime na linguagem humana!

Assassinaram atrozmente os meus filhos... e o tigre què os despedaçou... não tem filhos! Como hei de vingar-me do meu cruel e feroz inimigo? Em qual sangue poderei lavar o.crime do sanguinario monstro?

-Macduff. Todos os meus lindos filhos, disseste tu? todos? oh! abutre do inferno! Quê! todos os meus filhos, os meus queridos anjos, e a mãe d'elles, todos cortados com um só golpe?!...1

Estas ultimas palavras são a continuação do sublime grito de Macduff; e força é confessar que não desdizem das vozes que a Natureza põe na boca de um pae, e de um esposo, a quem tão desapiedadamente rasgaram o coração!

Se um só leitor podessé deixar de admirar este bellissimo rasgo de sublime pathetico... esse tal não teria alma.

Embora Chateaubriand 2 declare por fim que esta sublime passagem não tem igual; é certo que não póde perdoar-seThe o ter de algum modo posto em parallelo aquelle dialogo entre Macduff e Rosse com o de Flavian e Curiacio, na tragedia de Corneille.

Flavian vem annunciar ao amante de Camilla colhido para combater contra os Horacios:

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He has no children.-All my pretty ones?

Did you say all ?-O, hell-kite!-All?

que

What, all my pretty chickens, and their dam,
At one fell swoop?

foi es

2 Essai sur la littérature angloise, et considérations sur le génie des hommes, des temps et des révolutions!

É realmente bello este dialogo e pode sustentar a comparação com o de Shakspeare até á ultima resposta de Rosse; mas, desde que Malcolm falla, e Macduff rompe no sublime -He has no children-, este rasgo exclue todas as comparações, todos os parallelos.

No que eu acho toda a razão a Chateaubriand é em admirar-se de que o homem que chegou a exprimir com tal valentia os sentimentos mais violentos do coração humano, podesse ter assaz de amenidade e doçura para compor os suaves versos de algumas passagens de Romeo e Julieta. Romeo, condemnado ao desterro, é tomado de improviso pelo romper do dia em casa de Julieta, com a qual está casado clandestinamente. Julieta quer detel-o ainda:

Wilt thou be gone? It is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark
That pierced the fearful hollow of thine ear
Nightly she sings on yon pomegranate tree:
Beleeve me, love, it was the nightingale.

«Partir já! já! Mas ainda está longe o dia. O teu ouvido assustado julgou perceber o canto da calhandra que dá signal da manhâ; era o rouxinol que estava cantando: vem todas as noutes cantar debaixo da minha janella, escondendo-se na folhagem d'aquella romeira. Ó meu amor, acredita-me, estou bem certa do que digo, era o rouxinol.» etc.

A este proposito nos lembra o magnifico elogio que Schlegel faz de Shakspeare:

1

«Temos visto em nossos dias tragedias, que só apresentavam como catastrophe o desmaio de uma princeza. Se Shak speare cafu no extremo opposto, é certo que um tal defeito, essencialmente sublime, só póde provir da plenitude de uma força gigantesca. Aquelle Titão da tragedia accommette o Céu, e ameaça tirar o mundo dos seus eixos. Mais terrivel do que Eschilo, faz-nos eriçar os cabellos e gelar o sangue... ao mesmo tempo que possue o encanto seductor de uma poesia amavel, brinca, engraçadamente com o amor, e tem pas

1 Frédéric Schlegel. Cours de Littérature.

sagens lyricas, que se assemelham a suspiros que a alma exhala suavemente. Reune o que ha de mais profundo e elevado na existencia. As qualidades mais estranhas, e na apparencia mais oppostas, parecem n'elle atadas umas ás outras. O mundo da natureza e o mundo dos espiritos depositaram aos pés d'elle os seus thesouros. É um semi-deus, pela força; um propheta, pela profundeza do olhar; um genio tutelar, sobranceiro á humanidade, mas que, de vez em quando, se abaixa até ao nivel d'ella, com a simplicidade graciosa e ingenua da infancia.»

Com effeito, para louvar dignamente Shakspeare, é indispensavel recorrer a imagens tão ousadas, que aliás só um talento da ordem de Schlegel póde apresentar.

Chateaubriand merece ser citado, em quanto á apreciação, verdadeiramente grandiosa, que faz de Shakspeare: «Shakspeare est au nombre des cinq ou six écrivains qui ont suffi aux besoins et à l'aliment de la pensée; ces génies mères semblent avoir enfanté et allaité tous les autres... L'Angleterre est toute Shakspeare, et, jusque dans ces derniers temps, il a prêté sa langue à Byron, son dialogue à Walter Scott 1.»

E por quanto desejo ser prestavel aos que necessitam de aprender, lançarei aqui o que disse Goethe a respeito de Shak

speare:

«Não me recordo de que um livro, um homem, ou circumstancia alguma da minha vida produzissem sobre mim tamanho effeito como os dramas de Shakspeare. Parecem obra de um genio divino que se houvesse avisinhado dos homens, para lhes ensinar, do modo mais suave, a conhecerem-se a si mesmos. Não são poemas. Ao lêl os, julgamos estar collocados diante de volumes do destino abertos, com os quaes brinca um sôpro borrascoso, agitados pelas terriveis tempestades da vida que incessantemente lhes faz vibrar as folhas.-As mais mysteriosas e complicadas creaturas da natureza movem-se diante de nós, nas suas obras, como relogios, 'com mostrador e caixa de cristal: indicam

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