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LITTERATURA E BELLAS-ARTES.

UM ANNO NA CORTE.

CAPITULO XXXVI.

Denuncias.

373 Éra meio dia e El-rei ainda estava na cama. O rosto pallido de Sua Magestade, cercado pelos longos e emaranhados anneis da profusa grenha, tinha naquelle momento uma expressão carregada e sinistra, que fazia singular contraste com o brutal idiotismo que lhe caracterisava a phisionomia. O corpo obeso de Affonso VI, permanecia em perfeita immobilidade; e só de minuto a minuto o braço, direito estendendo-se para um prato que estava á cabeceira da cama, e levando depois á bocca um enorme fartelejo, que instantaneamente era devorado, dava a conhecer que daquelle corpo ainda não desaparecera de todo a mobilidade.

No extremo do quarto d'El-rei, do lado opposto aquelle em que estava a cama, havia um altarsinho forrado de damasco, sobre o qual se levantava um retabolo, representando o martyrio de Santo Estevão. Um padre ainda moço celebrava, missa com incrivel velocidade nesse altar, sem que D. Affonso mostrasse se quer ter dado pela sua presença.

Nos dias de semana, quando el-rei ficava na cama até ao meio dia, um padre entrava-lhe no quarto dizia missa e retirava-se; para que Sua Magestade se não incommodasse em ir á capella real. Nos dias de festa e nos domingos a missa, em vez de ir procurar Sua Magestade ao quarto, esperava por elle na capella real: de modo que muitas vezes, quando nas outras egrejas estavam a vespera é que a missa d'El-rei começava.

De joelhos ao lado da cama de Sua Magestade estava Henrique Henriquez de Miranda, de mãos postas, olhos baixos, murmurando orações, benzendo-se, batendo no peito, com tão grande compunção aparente, que parecia ter o sagaz cortesão tomado o encargo de ser, naquella occasião, devoto por sua conta e por conta de seu real amo.

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no hombro de Henrique Henriquez, D. Affonso exclamou :

que

Desta vez é meu irmão fica furioso contra mim ! Ir para Salvaterra sem comitiva, quando o que elle queria era representar de rei aos olhos da brixota, e de lhe fazer perder a cabeça! E a physionomia d'El-rei, pouco antes contraida pela colera concentrada, desenrugou-se n'uma risada alvar.

O cortezão, mal sentiu o movimento de Sua Magestade, sacudiu como uma mascara que lhe não convinha conservar por mais tempo, o ar de de devota compunção com que até alli assistíra á missa, e, pondo-se de pé, tomou o ar jovial, e cinico, que o tornára digno de gusar do valimento d'El-rei.

-Não me parece que V. M. faça bem em exasperar Sua Alteza, mais do que elle já está - acudiu Henrique Henriquez. Os seus Gentis-homens estão todos ausentes...

-Ah! Ah! É verdade estão todos ausentes, excepto aquelle maldicto Rodrigo de Menezes. E o Conde da Torre.

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- Mas o Sr. Infante não ha de ir sem comitiva alguma para Salvaterra, onde se reune toda a côrte, onde vae Sua Magestade a Rainha.

-Elle anda a querer-me namorar a Rainha, que eu bem no percebo; e tambem a namorarme o throno: mas ha de desenganar-se de que nem uma nem outra coisa é facil de conquistar quando eu não quero-disse El-rei encolerisado e batendo ao mesmo tempo tal punhada na cabeceira do leito, que fez saltar esmigalhada boa porção dos arrendados que o ornavam. — Partiremos para Salvaterra segunda feira, daqui a dois dias. Já o mandei partecipar á côrte. Quero festejar a nova que a Rainha me deu, de que bia ter herdeiro a coroa. Ninguem esperava tal, hem! Foi uma surpreza para todos; para meu irmão, para os do seu partido, e até para mim.

Sua Magestade terminou esta phrase com uma gargalhada tão prolongada e convulsiva, que parecia não poder finalisar nunca.

O padre, que ouvíra a conversação de D. Affonso com um dos seus validos, julgou prudente acabar logo a missa e retirar-se. Antes porém de sair do quarto, aproximou-se da cama d'El-rei para, segundo o costume, The beijar a mão, e receber as suas ordens. O ruido que elle

fez ao atravessar a caza, tirou Sua Magestade da convulsão de riso nervoso, em que o posera a sua propria graça chocarreira e miseravel. Parou de rir e voltando-se para o padre com gesto impaciente:

pe

Estou, de certo que estou. É um malvado, um traidor, um insolente. Queres tambem dir-me por elle, como o Castello-Melhor? - Não, Senhor. Eu acho que V. M. faz bem em castigar os seus inimigos. Quem os inimi

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- Que fazes, que queres tu aqui ? -pergun-gos poupa, nas mãos lhe morre. O Conde de tou elle. Quem te disse que entrasses neste Castello-Melhor parece que ignora o rifão. quarto.

Segundo as ordens de V. M.-respondeu o padre enfiado e tremendo vim para dizer a

missa.

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Está bom; está bom. Então merece recompensa. Dá-lhe ahi algum dinheiro, para elle se regalar, este padre. Ah! E para compensar a missa que eu hoje não ouvi-proseguiu o Rei, mudando de tomescreve a Antonio Cavide, Henrique Henriquez, ordenando-lhe da minha parte que mande dizer immediatamente cem missas ás almas.

-Pois sim, real senhor; vou cumprir immediatamente as suas ordens.

-Podes safar-te-disse El-rei ao padre, quando este recebeu um cruzado da mão de Henrique Henriquez. Já aqui não tens nada que fazer.

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Ainda bem; ainda bem que pensas, como eu. Hei de dar cabo de todos esses fidalgos traidores, que andam por ahi a conspirar contra o Conde; o meu rico, o meu bom Conde. As missas quero-as bem distribuidas, pelos Santos de mais devoção-proseguiu El-rei. São mil, não é assim? Eu disse-te mil.

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Então vae contando. Trezentas ás almas, com cem a Nossa Senhora da Conceição...

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-Cem ao Bom Jesus de S. Domingos...

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Não creio que ninguem ouse commetter um tal sacrilegio.

Dizem, hão de dizer. E hão de tambem publicar por toda a parte que meu irmão é um santo, que o Pedro é um principe perfeito.

Proclamam que Sua Alteza é um modelo de virtude accudiu Henrique Henriquez.

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-Que mo venham dizer a mim, que o vi accommetter uma ronda alli ao Rocio, e matar um pobre homem com um tiro de pistola, e eu lhes responderei.

Verdores da mocidade!

-E aquelle rapaz que elle quiz assassinar, por causa do seu criado Gaspar Varella. . .

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Foi salvar a vida do seu moço da capara mara, que o sr. Infante acutilou o tal rapaz; o filho de um capitão de mar e guerra.

-E Simão de Vasconcellos a quem elle deu uns tiros...

-Simão de Sousa é irmão do Castello-Melhor. Foi uma vingança. Mas dizem que o sr. Infante está muito mudado: que se dá ás sciencias...

-Ah! Ah! Meu irmão dá-se ás sciencias! -exclamou El-rei a quem as astuciosas respostas de Henrique Henriquez haviam irritado. Elle, que nem o seu nome sabe escrever, darse ás sciencias! O que o Pedro sabe é pegar bem n'um toiro, montar a cavallo, e deitar cães de fila aos mulatos da cavallariça. Querem fazer crer ao povo e á côrte que meu irmão é bom e virtuoso, para melhor guerrearem o CastelloMelhor; pois perdem o tempo, que não hão de conseguir nunca tiral-o do meu lado.

Henrique Henriquez alcançára o seu fim, que era excitar a colera d'El-rei contra o Infante. Elle não desejava, é verdade, a desunião dos dois principes; mas, como via nessa desunião um meio seguro de melhor firmar o valimento do conde de Castello-Melhor, e por conseguinte o seu proprio valimento, não hesitava em irritar, sempre que podia, em D. Affonso, o ciume que, desde a infancia, este sempre mostrára de seu

irmão.

Vendo que o espirito d'El-rei estava preparado para receber a impressão que elle lhe desejava dar, o malicioso cortesão, que havia calculado a importancia dos meios de que dispunha, para excitar o rancor de Sua Magestade contra os inimigos do Conde valido, disse, com uma voz que elle artificiosamente fingiu commovida :

-Não sei se devo importunar a V. Magestade com um negocio grave, a esta hora, estando V. M. ainda deitado; mas a importancia... O que é?-perguntou El-rei.

Esperarei que V. M. se erga, para lhe communicar então...

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É um segredo, o que esse homem quer dizer ao Castello-Melhor?

-Ao Conde ou a V. M. É um segredo, diz elle, de que depende a salvação da patria.

--

Sempre val a pena saber-se o que é disse El-rei, cuja curiosidade Henrique Henriquez soubera excitar.-Vou-me vestir. Isto, são horas. Vou-me vestir para ouvir o segredo do tal capitão de milicianos.

Vestindo-se á pressa, com o auxilio do general de artilheria, aguilhoado pela curiosidade, correu á sua antecamara, e ordenou a um dos criados que ahi estavam esperando as reaes ordens, que lhe trouxese à sua presença o capitão de milicianos, que estava na sala dos Tudescos.

Não tardou em entrar pela antecamara d'Elrei dentro, de chapéu na mão, corpo curvado até ao chão, joelhos a dobrarem-se-lhe a cada passo, humilde, servil, reptilmente, o sr. capitão Aniceto Muleta.

O sr. Aniceto viera ao paço para, como dissemos, cumprir a promessa feita na vespera ao seu amigo Fr. Thomaz do Espirito Sancto. Mas ao saber que o Conde estava ausente, caiu-lhe a alma aos pés ao pobre capitão. Voltar porém a traz no seu intento, ir-se sem cumprir a promessa que fizera, era expôr-se a perder a util amizade do frade, as duzentas missas que este promettera rezar-lhe por alma, e, o que mais era, a importante quantia de duzentos cruzados em boa prata de lei. Esperar, alli no paço, diante de tanta gente, era correr o risco de se vêr compromettido para com os parciaes do Infante, e talvez de perder a vida. Oscilando entre um e outro destes perigos, hesitando entre os dois alvitres que se lhe antolhavam, o capitão Aniceto foi-se deixando ficar, escondido no vão d'uma janella, na sala dos Tudescos; até que, vendo passar Henrique Henriquez de Miranda, resolveu confiar-lhe o seu segredo, por

que conhecia os laços de mutuo interesse que o prendiam ao Conde valido.

Henrique Henriquez calculando logo a utilidade, que de tão importante revelação podia tirar a causa do valido, ordenou ao sr. Aniceto, que se preparasse para narrar a Sua Magestade o que ouvíra em casa do Infante. O pobre Ani-. ceto, tremendo de mêdo, buscou escusar-se de cumprir tão perigosa ordem ; porém a voz do general era tão imperiosa, e havia nos valentes da patrulha alta d'El-rei, que estavam na sala, tantas caras patibulares, que elle não teve remedio senão calar-se, e esperar.

O sr. Aniceto entrou pois na antecamara de El-rei, mais morto que vivo. Mal chegou ao meio da casa parou, deixou cahir o chapéu das mãos, e deu com ambos os joelhos em terra, como se lhe houvesse cahido em cima um pezo de cem arrobas.

Abi está, senhor, o homem que pediu para fallar a V. M.-disse Henrique Henriquez em alta voz. E chegando-se a Aniceto Muleta, murmurou-lhe ao ouvido: Se não fallas, mando-te tirar a pelle com um azorrague.

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Que me queres tu? Que segredo é esse que tens para dizer?-perguntou Affonso VI. - Senhor... eu...-E a voz perdeu-se na garganta do miliciano.

Falla.

-Eu... V. M. ha de ter dó de mim... porque, emfim, foi para bem do reino... o acaso... eu não queria.

-Eu não intendo este homem!-exclamou El-rei impaciente.

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Dize a El-rei, o que tens para lhe dizer; e de pressa disse o valido com um tom de voz, que fez quasi perder o alento ao desgraçado capitão.

Fazendo das fraquezas forças, e n'uma contracção espasmodica de susto, que se podia tomar por um acto de destemido arrojo, o sr. Aniceto, pondo-se de pé, exclamou :

-Nem V. M., nem este fidalgo, é capaz de me deitar a perder, que eu bem no sei; mas, antes de dizer o que tenho para dizer, peço-lhes que promettam não revelar a ninguem o meu no

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-Mas póde querer sabel-o, e então... -E se Sua Magestade não quizer fazer a promessa que tu lhe pedes? -Não fallarei.

-A Sua Magestade não faltam meios para te fazer fallar. Um mulato e um azorrague; um pôtro e um carrasco; uma forca e uma corda fazem até fallar mudos.

-Deus tenha misericordia de mim!-exclamou o desditoso Aniceto, caindo de bruços no chão.

-Deixa lá esse miseravel-acudiu El-rei. Nem val a pena de o atormentar. E é capitão de milicianos, isto!

-Real senhor, prometta pelo amor de Deus... murmurou o Muleta.

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Eu peço perdão a V. M. de ter tido tão grande atrevimento-disse, um tanto mais socegado pela promessa d'El-rei, o capitão. Mas era segurar a vida; e V. M. não pode levar a mal que a gente tenha amor á vida.

-Como te chamas?-perguntou Henrique Henriques, com impaciencia.

- Aniceto Muleta, um criado de V. M. -Aniceto Muleta! Ah! Ah!-E Sua Magestade cahiu n'uma cadeira, a rir como um perdido.

Á vista da hilaridade d'el-rei, o capitão de milicianos cobrou animo, foi-se levantando pouco a pouco, e finalmente ficou em pé de todo.

-Onde foste buscar esse ridiculo nome?perguntou D. Affonso, quando lhe passou um pouco o ataque de riso.

Aniceto, senhor, foi o nome que me deram na pia do baptismo-respondeu o miliciano. Muleta, foi alcunha que me pozeram os rapazes da minha terra, por meu pae, que era coxo, me quebrar um dia nas costas a muleta, a que se abordoava.

Alguma lhe fizeste tu!

Injustiça, foi uma injustiça paterna. -Talvez fosse para te castigar de seres me

droso.

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Por

-O odio dos conselheiros de Sua Alteza contra o Conde é tão grande, que a V. M. não deve causar admiração, o que este homem acaba de contar disse Henrique Henriquez. melhor que seja o coração do sr. Infante, Sua Alteza não póde deixar de ceder aos perfidos conselhos, ás sugestões e ás intrigas dos seus parciaes.

O coração de Pedro não é bom e elle o que quer é realisar a idéa que a rainha minha mãe lhe meteu na cabeça. Quer ser rei; o Castello-Melhor tem-mo dito muitas vezes, e elle bem sabe porque o diz. Pois hei de dar-lhe uma licção mestra...

Henrique Henriquez, receiando que el-rei dissesse, diante do capitão Aniceto Muleta, alguma coisa que este podesse ir contar depois ao CorteReal, interrompeu Sua Magestade, dizendo:

-Senhor, este homem veio dar-nos um tão importante aviso, que não deve ir-se da presença de V. M. sem recompensa...

-É verdade, é verdade. Dá-lhe dinheiro -acudiu el-rei. Dá-lhe o que elle pedir.

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-Não é dinheiro que eu peço a V. M., senhor. Outra coisa; duas coisas quizera eu que V. M. me fizesse atalhou Aniceto Muleta. Então dize que coisas são essas.

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Isso não faço eu.

V. M. disse que me dava o que eu lhe pedisse; e eu o que lhe peço, é que me dê vida para um homem...

-Então tu queres esse perdão para outro, que não para ti.

-É para mim que eu o quero. Mas como espero não ter occasião de me servir delle-e Deus permitirá que assim seja, — desejo sentir em mim o poder de salvar, quando eu quizer, a vida de um homem. É uma idéa que me dá gosto.

- Póde-se fazer o que este homem pede?perguntou El-rei, voltando-se para Henrique Henriquez.

-Póde, senhor-respondeu este.

El-rei então, pegando da penna, assignou um papel, e mandou a Henrique Henriquez que escrevesse nelle a ordem de darem a liberdade a um réu condemnado á morte; determinação que o cortesão immediatamente cumpriu.

O capitão Aniceto Muleta beijando, com as lagrimas nos olhos, a mão de Sua Magestade, saiu da antecamara, e encaminhou-se logo, correndo pelos corredores e descendo aos pulos as escadas, para o Terreiro do Paço. Quando se viu ao ar livre tomou folego, e, depois de ter lido com muita attenção o papel que El-rei lhe dera, foi a passos lentos caminho da Graça. A imagem da forca, que na vespera o Conde da Torre The erguera diante dos olhos, havia-se esvaecido de todo.

Henrique Henriquez, que ficára, depois da

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